sábado, 23 de janeiro de 2010

capítulo III.

Novo Rei

Seth espreguiçou-se. Ainda não recuperara completamente o sono de há duas noites. Niles ajudou-o a vestir-se; nem reparou no que estava a colocar. Não importava, não era relevante a roupa, nesse dia. Tinha de ir assistir à coroação de Bryan, e não estava muito entusiasmado. Quase podia ver o sorriso da gémea quando haviam falado sobre isso. Toda feliz com o primo rei. Ao menos desta vez poderia ficar ao lado dela enquanto lhe metiam a coroa na real cabeça. Conseguia ver também o ar trocista de Shairany. Ela gostava dele, era seu irmão, mas não lhe agradava a ideia de ele gostar de Nyree.

O sol entrava suavemente pelo quarto. Quando acabou de se aprontar despediu-se de Niles e saiu. Já restava pouca gente nos corredores dos aposentos masculinos, apenas um ou dois atrasados. Como ele mesmo. Com as mãos nos bolsos, percorreu o caminho pelo mármore até ao salão. Grande parte das pessoas já lá se encontrava, tanto nobres como burgueses. Bryan era popular, mesmo antes de ser rei. Tomou uma entrada secundária, escapando à multidão e acercando-se do lugar que lhe estava reservado ao lado das irmãs. Nyree, cumprimentando-o com um sorriso, estava deveras bonita, os cabelos presos no topo da cabeça num toucado de pedras verdes e com um vestido da mesma cor, que se lhe ajustava ao corpo na perfeição. Shairany também estava bela, com o cabelo ornado por jóias rubras e um vestido vermelho que lhe deixava desnudos os ombros de pálida pele.

Sorriu às duas ao sentar-se ao lado delas, olhando para o resto dos presentes. Toda a gente da nobreza e alguns membros da alta burguesia. Parecia prometer uma festa animada. Bryan ainda não entrara, mas a cerimónia parecia prestes a começar. Esperava que iniciasse depressa; mais celeremente sairia dali. Naquele momento as trompetas começaram a soar e as portas atrás do trono abriram-se, deixando entrever um pequeno cortejo, no meio do qual se encontrava Bryan, postura solene e cabeça erguida, ainda que com um sorriso ligeiro a ameaçar surgir. Colocou-se em frente à multidão, de cada lado dele os Grão-sacerdotes e a Grã-Sacerdotisas dos quatro deuses, todos com vestes ornadas de ouro e prata.

Seth fungou. Cada um se achava mais importante que o outro, exibindo todas as riquezas que podiam. Observou as pessoas no estrado e os seus olhos detiveram-se sobre Dementia e Tyrev. Os rostos de ambos encontravam-se estranhos, rígidos e compenetrados nas costas de Bryan. Coçou o queixo. Tyrev nunca gostara muito do irmão, mas Dementia era mãe dele. Talvez estivesse indisposta. Nyree mexeu-se na cadeira, ao seu lado; quando a fitou os seus olhares cruzaram-se, não foram precisas palavras para saber que ela vira o mesmo. A gémea já fugira várias vezes de confrontações com Tyrev, quando este tentara assediá-la. Shairany era capaz de escapar à sua perseguição quando estava no palácio, respondendo-lhe mal em frente a outras pessoas para o embaraçar, e ele agora limitava-se a olhá-la rancorosamente. Seth apenas esperava que não se lembrasse de se vingar.

Bryan foi coroado, na sua cabeça repousando a coroa elegante de ouro refulgente. Sorria agora abertamente a todos, descendo as escadas do estrado para o caminho que se abria à sua frente até ao exterior, ao hall. Parou, estendendo o braço à sua mãe e retomando a marcha. Agora seria o momento em que deveria falar para o povo. Ninguém saiu do lugar, soltando vivas enquanto ele subia as escadas até à varanda a partir da qual faria o seu discurso.

Seth acomodou-se melhor no lugar sem perder a graciosidade. Esperava que o discurso não fosse grande. Nyree parecia compenetrada em tentar ouvir o que Bryan dizia aos seus súbditos, apesar de não se perceber uma palavra do que ele dizia, tudo abafado pelos gritos e aclamações do povo. Shairany, contudo, olhava Seth de lado, com um sorrisinho que o irritou.

— O que foi? — silvou-lhe, em voz baixa.

Ela endireitou as costas. — Ora, nada. A Ny parece muito feliz, hoje, não achas?

Decidiu não lhe responder, voltando-lhe parcialmente as costas. Com a teimosia dela não valia a pena competir.

O discurso terminara finalmente, por entre uma salva de aplausos e assobios, tudo saudando o novo rei. Era-lhe difícil pensar em Bryan como rei, mas teria de se habituar.

Acabada a cerimónia de coroação, passar-se-ia ao banquete. O primo voltava agora para dentro, ainda tão sorridente quanto antes, e o público na sala levantou-se para o seguir. Da varanda interior onde estavam instalados, os irmãos Wynter fizeram o mesmo, todos graciosamente felinos. Seth cedeu a dianteira a Nyree e Shairany que poderia ter algo de jocoso para os mais atentos. Ou talvez fosse apenas o relampejar da luz vinda do exterior nos seus olhos cinzentos.

O cortejo era longo e mais atabalhoado que o da Celebração da Passagem, não existindo agora a ordem dos pares imposta pela solenidade e vogando pelos caminhantes uma lesta onda de boa-disposição. Seth não partilhava dela; o seu humor ainda não melhorara muito, tendo sido, apesar de tudo, capaz de forjar um sorriso que apresentou aos outros convivas, facilmente enganados. Nyree não reparou nele, alegremente seguindo a procissão, mas Shairany abanou a cabeça, fingindo estar desapontada. Ele lançou-lhe um olhar irritado e acelerou o passo, passando à frente das duas e surgindo ao lado de Aune Lenore. Era uma rapariga que não gostava de falar, tímida por natureza. Era bonita, mesmo com a cara comprida e olhos grandes como os de uma coruja, castanho-esverdeados. O cabelo, preso com ganchos de modo a formar um nó elaborado, começava a soltar-se, deixando madeixas de um loiro escuro a flutuar em redor do rosto. Todo este corou quando viu Seth surgir, mais ainda quando ele lhe dirigiu o seu sorriso. Estava em crer que ela tinha um fraquinho por ele, e aprazia-lhe brincar com ela de quando em quando. Provavelmente a paixoneta dela crescera quando ele a salvara, subtilmente, de um encontro acidentado com Tyrev. O homem, insistindo em ter todas as mulheres existentes no palácio, fossem elas de que estrato social fossem, não deixava de perseguir mesmo as damas de companhia da sua mãe, encurralando-as em esquinas e corredores vazios. Por mais que uma vez Seth salvara uma ou duas, incluindo a sua própria gémea.

Caminharam lado-a-lado em silêncio, Seth e Aune, até aos jardins reais, onde estavam espalhadas várias mesas, aparentemente sem razão ou ordem; junto delas um pequeno estrado com uma banda e um grupo de saltimbancos no meio, no espaço em redor da fonte. Seth lembrava-se de brincar nela quando fora mais novo, nas vezes em que, com a família, viera visitar a corte. Ele e Shairany, ignorando Nyree, que lhes pedia que parassem, entraram para dentro de água, lutando entre eles e acabando encharcados. Bryan pegara neles pela gola e levara-os para o palácio, sorrindo como se também ele tivesse caído dentro da fonte. Não escaparam a uma descompostura dos pais, tendo sido impedidos de sair para os jardins exteriores durante algum tempo. Seth imaginou-se a saltar novamente para a fonte, agora na festa da coroação do primo. Ele riria, provavelmente, e talvez voltasse a pegar nele pelo pescoço para o obrigar a ir mudar de roupa.

Naquele momento, Bryan tomava lugar na mesa que tinha um lugar de destaque, na cadeira central, ricamente ornada e entalhada, de madeira escura com decorações douradas. Sentou-se com um sorriso radiante, curvando-se para a ainda sisuda mãe que se sentara ao seu lado direito. Os três Wynter tomaram lugar na mesa mais próxima da da família real, sentando-se Seth entre as duas irmãs. Nyree ficara na ponta; Shairany sorria alegremente para a amiga ruiva, Alene Eudora, trocando comentários em voz baixa.

Quando todos estavam sentados, a comida começou a surgir, criados carregando-a em largas travessas que colocavam nas mesas para os convivas. A gémea de Seth mantinha os olhos cinzentos pousados sobre os saltimbancos enquanto comia, um deles engolindo uma espada, o outro rodopiando no meio de cordas em chamas. Imitou-a; entre os artistas havia uma mulher que envergava roupas estranhas e justas ao corpo, revelando muito do que se encontrava por baixo. Talvez ela estivesse livre mais tarde. Nessa altura Bryan levantou-se, batendo com a faca no copo de cobre, e instalou-se o silêncio.

— Estimados convidados, — começou, olhando todas as mesas, — este dia é um de celebração e de festejos. Merece ser vivido com alegria e contentamento, com comida e bebida, música e dança. Não deve ser esquecido, contudo, aquele que durante anos nos reinou, ensinando-nos tanto e de forma tão justa, com firmeza e benevolência, sem esquecer uns e outros e estendendo a mão de forma igual a todos.

Fez-se um momento de silêncio ante as suas palavras, e a rainha levantou-se de seguida. — Tens razão, meu filho, meu rei. Mas agora um novo futuro espera-nos, um em que serás tu o nosso líder, o nosso guia, a nossa luz. — O seu sorriso era belo e sereno, transmitindo segurança e conforto. O filho tomou a mão dela e beijou-a, e o público aplaudiu.

Seth suspirou de impaciência e exasperação. Quão pior se tornaria aquilo? Os saltimbancos saltavam agora do sítio onde estavam, a música começava a preencher os jardins, imiscuindo-se com o perfume das flores outonais e com as folhas caídas das árvores já vermelhas, acastanhadas ou ainda verdes, verdes por todo o ano. Recostou-se na sua cadeira enquanto via os artistas procurar pares entre os nobres; eram recebidos com exclamações de ultraje ou com risos divertidos, estes que riam eram levados para o centro, rodando em redor da fogueira ao som dos acordes da banda. A mulher que fitara há bocado estendia a mão para Carson Lee, mas ele olhou-a com desprezo e virou-lhe depois as costas. Em poucos minutos, Seth levantara-se e levara-a para junto dos outros pares, sorrindo aos seus olhos esverdeados e cabelos castanhos em belos caracóis anelados. Tanto um como o outro eram ágeis e graciosos dançarinos, coordenando os passos fácil e lestamente sobre as lajes brancas do chão. A música acabou, começou outra, de novo dançaram como um perfeito par. Ela tinha um sorriso fácil e agradável, era alta, quase da sua altura; não falaram, não era preciso.

Após terminarem uma quarta dança, ainda sem trocarem palavras, Seth puxou-a pelo braço, e discretamente abandonaram o espaço da festa em direcção ao pinhal. Partiam sons abafados daqui e dali, provavelmente de gente que tivera a mesma ideia. Levou-a para mais longe, não querendo que outros o ouvissem também. A mulher sorria ainda, não parecendo assustada. Estaria habituada, talvez. Encontrou um lugar que lhe pareceu confortável, encostando-a a uma árvore e tomando-lhe as formas com as mãos. Não demorou a esquecer a festa.