quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

capítulo iv.

Funesto Evento

Endireitou-se na cadeira, enxugando os olhos o melhor possível com o lenço branco que uma mão lhe entregara. À sua volta encontrava-se um grupo de pessoas que falavam, murmurando-lhe palavras de consolo ao ouvido e apertando-lhe os ombros em tentativas de a recompor, e Nyree não soube distinguir quais os gestos que traziam consigo sinceridade e aqueles carregados de cinismo. Respirou fundo, revendo o que acontecera.

Seth desaparecera durante os festejos, mas Shairany e Alene Eudora haviam ficado junto a ela, conversando amigavelmente. Bryan parara junto à mesa delas por momentos, cumprimentando-as, e partira depois para uma dança com Candice Rolf. A festa corria bem até um criado entrar no jardim, ofegante, anunciando a chegada dos senhores Wynter, feridos. Nyree julgou-se prestes a desfalecer, por segundos, mas levantou-se e seguiu Shairany até ao pátio, onde uma carruagem em mau estado se encontrava circundada por meia dúzia de soldados que pareciam pior que o veículo. Um físico espreitava pela porta aberta para o interior, que as irmãs não conseguiam ver. Shairany avançou, Nyree seguiu-a, mas um braço deteve-a, agarrando-a pelos ombros. A voz de Bryan passou por cima da sua cabeça para chegar a Shairany, dizendo-lhe para parar. Ela fê-lo, olhando para ele irritadamente e ainda a meio da passada, como se prestes a continuar.

— Deixa os físicos tratarem deles, Shairany.

Ela não se mexeu, baixando os olhos. Nyree compreendia-a. Também ela queria ver os pais. O braço de Bryan, contudo, ainda a impedia de prosseguir. Não a segurando com muita força, o seu aperto era firme. Shairany olhou a carruagem uma última vez e acenou, voltando para trás.

— Eles...

Bryan interrompeu-a. — Eles vão ser levados para a ala dos cuidados a doentes. Podem ir lá vê-los quando os físicos derem a sua autorização. — O seu tom não era exactamente severo, mas não parecia estar longe. O seu braço largou Nyree, mas as suas mãos incitaram-na a dar meia volta e a regressar ao palácio. Nessa altura, os seus olhos começaram a ficar inundados de lágrimas que lhe toldavam o caminho, e sentiu a mão da irmã a apertar a sua.

Não prestou atenção ao percurso, deixando-se cair na cadeira que lhe indicaram. Um grupo parecera surgir de repente, seguindo-os numa procissão de murmúrios e condolências, rodeando-a quando se sentou. Não deu pelo desaparecimento de Shairany ou Bryan, mas quando os procurou com o olhar nenhum estava à vista. O peito apertava-se-lhe até mal conseguir respirar, entrecortando o ar com os soluços do choro. Encolheu-se sobre si mesma, sabendo que estava a revelar demasiado de si, mas era essa a sua fraqueza. A sua família era demasiado importante para si e não era capaz de se desprender dela, ainda que tentasse. Queria ver os pais, naquele momento, certificar-se de que ficariam bem, mas o primo tinha razão, e os físicos tratariam deles o melhor que podiam. Onde estava Seth?

Candice entregou-lhe outro lenço, mas outra mão tomou-o antes que ela o agarrasse. Dementia Wallace mandou afastarem-se todos, para que Nyree pudesse respirar, e chamou o filho. Tyrev. Ele ajoelhou-se à sua frente, com um sorriso, e a mãe e Rainha passou-lhe o lenço de Candice. O segundo filho da família real encostou-o à face de Nyree, que estremeceu, esperando que o tremor fosse tomado por choro. Não podia ser ofensiva ao ponto de lhe afastar a mão, principalmente em frente a Dementia, pelo que se manteve imóvel. Foi Shairany que interveio, quase delicadamente interpondo-se entre ela e Tyrev, dizendo que a levaria para o quarto, para descansar. Já sem chorar, Nyree levantou-se e seguiu-a, escondendo os olhos ao ver a expressão do primo. A ambição era clara na sua face, inegável, enquanto as via partir.

— Eles não me deixam vê-los, ainda. — Shairany fechou a porta do quarto da irmã atrás de si, depois de a empurrar para o interior. — O Bryan está com os físicos e também insiste em não me deixar passar.

Nyree sentou-se na ponta da cama. — E o Seth?

A irmã abanou a cabeça. — Nada, ainda. Deve ter saído a meio da festa para fazer alguma coisa. — Pelo seu olhar, ela sabia o que era essa coisa. E não lhe agradava. Com um suspiro, caiu no cadeirão e recolheu as pernas debaixo de si, com pouco cuidado com o vestido.

Nyree adormeceu, encolhida na cama debaixo de uma pesada manta, acordando de quando em quando sem saber porquê, voltando a imergir no sono momentos a seguir. Não descansou verdadeiramente, mas a fuga temporária à realidade serviu-lhe de bálsamo delicado à alma. Quando acordou de vez, finalmente, era noite, e a janela aberta do quarto bafejou-a com ar frio que lhe arrepiou a pele ao sentar-se e livrar-se da manta. Shairany não se encontrava lá, mas um vulto no sofá levantou-se ao vê-la despertar. O seu coração começou a galopar no peito, assustado.

— Seth? — Não, era maior que o irmão, e mais entroncado.

Quando o pôde ver, assim que ele se colocou num ângulo em que o luar lhe incidia nas feições, Nyree quase suspirou de alívio. — Não devias estar aqui, Bryan.

Ele sorriu e levou-lhe uma mão à cabeça, desprendendo o toucado já mal preso e fazendo com que os cabelos ficassem definitivamente soltos, escorregando-lhe pelas costas. — Entrei pela janela, ninguém me viu. A tua irmã sabe que eu estou aqui, avisa-me se andarem a chamar por mim. — Fez um esgar. — Se quiserem coisas importantes. Não acreditas na quantidade de vezes que já me chamaram hoje por disparates, Ny.

Ela cruzou as pernas e rodeou-se com os próprios braços; o ar vinha frio. — Os meus pais?

Bryan sentou-se à sua frente e deu-lhe uma palmada suave na cabeça. — Estão a salvo. Têm algumas feridas graves, e precisam de repousar, mas amanhã já os podes ver.

O alívio foi tal que sentiu vontade de chorar outra vez, mas conteve as lágrimas. Ainda sentia os olhos cansados do choro de antes e a cabeça pesada. E frio. Bryan apercebeu-se, pegando na manta e enrolando-a à volta dos seus ombros. Nesse momento, o primo colocou-lhe uma mão sobre a boca, a sua cara virando-se lestamente como o estalar de um chicote para a janela. Um vulto esguio empoleirava-se lá, as feições obscurecidas pelo luar que batia nas suas costas. Mas Nyree reconhecia-o, de tantas vezes o ver naquela mesma posição. Usou as mãos para afastar a de Bryan que a impedia de falar, e Seth entrou para o quarto, os pés quase não produzindo um som ao serem pousados sobre o chão de pedra. Conseguiu discernir o seu rosto, com uma expressão que punha em conflito culpa e irritação.

— Olá, Bryan. — Colocou-se do lado oposto da cama ao do primo, fitando-o.

— Estou a ver que tivemos a mesma ideia. — Pareceu a Nyree distinguir simpatia e desafio na face do Rei. — Já sabes da notícia, presumo.

Seth acenou. — Sim. Já os fui ver, insisti com os físicos até me deixarem passar. — A gémea remexeu-se no lugar. Também queria ir vê-los, mas agora deviam estar a dormir. Ele continuou. — Não estavam acordados, amanhã volto lá.

Uma rajada inundou o quarto, e Seth afastou-se para fechar a janela, falando enquanto o fazia. — Tens de comer alguma coisa, Ny.

Foi Bryan que se levantou, contudo, dirigindo-se à mesa baixa junto ao sofá onde estivera sentado, pegando num tabuleiro. — O leite ainda deve estar quente. Pedi que metessem uma colher de mel. — Colocou-o em cima da mesa de cabeceira, enchendo depois uma chávena com o conteúdo ainda fumegante do bule de porcelana com floreados dourados e estendendo-lha.

Nyree segurou-a entre as duas mãos, agradecendo. Aqueceu-lhe os dedos e a garganta; Bryan tivera razão, ainda estava quente. Foram-lhe também passados alguns biscoitos doces, que comeu com dentadas controladas, uma vez que a fome que sentia levá-la-ia a comer tudo de uma vez. Os dois observaram-na em silêncio, Bryan reenchendo-lhe por duas vezes a chávena. Já sentia a cabeça menos pesada, e recostou-se para trás, apoiando as costas direitas contra as altas e cinzentas almofadas ornamentais, bordadas a fio de prata.

Sorrindo, Bryan passou uma mão pelos seus cabelos, despenteando-lhos. — É melhor dormires. Acredito que amanhã queiras acordar cedo. — Inclinando-se para a frente, deu-lhe um beijo na testa, afastando a franja. — Boa noite. — Despediu-se de ambos os Wynter com um aceno, dirigindo-se à janela e abrindo-a. Rapidamente desapareceu de vista, e Nyree levantou-se para o ver descer. O irmão estava habituado a fazer aquilo, mas o primo nunca descera por ali antes.

Esperou até ele chegar ao chão e desaparecer do pequeno jardim até fechar a janela, sentindo a pele arrepiada do frio. Ao voltar-se deparou-se com Seth, a apenas um passo de distância. Ele despiu o próprio casaco e colocou-o sobre os ombros dela, agarrando-lhe depois nas mãos e fitando-as.

— Desculpa-me, Nyree. Não estava aqui quando tu e a Shairany precisavam de mim. Quando os pais precisavam de mim.

A perplexidade que sentia ao ouvi-lo falar foi substituída por um pequeno sorriso triste. Soltou as mãos e abraçou-o. — Não tens de pedir desculpa. — Encostou a cabeça ao ombro dele, enquanto ouvia gotas ferozes embaterem cada vez mais violentamente contra os vidros. Momentos passaram antes de Seth se mexer, erguendo os braços para a apertar também, afagando-lhe o cabeço solto.

Foi ele que se afastou primeiro, fazendo-a dar meia volta e encaminhando-a para a cama. — O Bryan tem razão. Tens de dormir.

Esperou de costas voltadas enquanto ela despia o vestido e apressadamente vestia a nívea e rendada camisa de noite. Depois de Nyree se deitar ele ajeitou as cobertas da cama, certificando-se de que ela estava completamente tapada, e sentou-se ao seu lado, cantando uma melodia de embalar que a mãe lhes murmurava há muitos anos. Nyree adormeceu aninhada entre os suaves lençóis, a mão do irmão apertando a sua e a sua voz roçando-lhe a alma.

sábado, 23 de janeiro de 2010

capítulo III.

Novo Rei

Seth espreguiçou-se. Ainda não recuperara completamente o sono de há duas noites. Niles ajudou-o a vestir-se; nem reparou no que estava a colocar. Não importava, não era relevante a roupa, nesse dia. Tinha de ir assistir à coroação de Bryan, e não estava muito entusiasmado. Quase podia ver o sorriso da gémea quando haviam falado sobre isso. Toda feliz com o primo rei. Ao menos desta vez poderia ficar ao lado dela enquanto lhe metiam a coroa na real cabeça. Conseguia ver também o ar trocista de Shairany. Ela gostava dele, era seu irmão, mas não lhe agradava a ideia de ele gostar de Nyree.

O sol entrava suavemente pelo quarto. Quando acabou de se aprontar despediu-se de Niles e saiu. Já restava pouca gente nos corredores dos aposentos masculinos, apenas um ou dois atrasados. Como ele mesmo. Com as mãos nos bolsos, percorreu o caminho pelo mármore até ao salão. Grande parte das pessoas já lá se encontrava, tanto nobres como burgueses. Bryan era popular, mesmo antes de ser rei. Tomou uma entrada secundária, escapando à multidão e acercando-se do lugar que lhe estava reservado ao lado das irmãs. Nyree, cumprimentando-o com um sorriso, estava deveras bonita, os cabelos presos no topo da cabeça num toucado de pedras verdes e com um vestido da mesma cor, que se lhe ajustava ao corpo na perfeição. Shairany também estava bela, com o cabelo ornado por jóias rubras e um vestido vermelho que lhe deixava desnudos os ombros de pálida pele.

Sorriu às duas ao sentar-se ao lado delas, olhando para o resto dos presentes. Toda a gente da nobreza e alguns membros da alta burguesia. Parecia prometer uma festa animada. Bryan ainda não entrara, mas a cerimónia parecia prestes a começar. Esperava que iniciasse depressa; mais celeremente sairia dali. Naquele momento as trompetas começaram a soar e as portas atrás do trono abriram-se, deixando entrever um pequeno cortejo, no meio do qual se encontrava Bryan, postura solene e cabeça erguida, ainda que com um sorriso ligeiro a ameaçar surgir. Colocou-se em frente à multidão, de cada lado dele os Grão-sacerdotes e a Grã-Sacerdotisas dos quatro deuses, todos com vestes ornadas de ouro e prata.

Seth fungou. Cada um se achava mais importante que o outro, exibindo todas as riquezas que podiam. Observou as pessoas no estrado e os seus olhos detiveram-se sobre Dementia e Tyrev. Os rostos de ambos encontravam-se estranhos, rígidos e compenetrados nas costas de Bryan. Coçou o queixo. Tyrev nunca gostara muito do irmão, mas Dementia era mãe dele. Talvez estivesse indisposta. Nyree mexeu-se na cadeira, ao seu lado; quando a fitou os seus olhares cruzaram-se, não foram precisas palavras para saber que ela vira o mesmo. A gémea já fugira várias vezes de confrontações com Tyrev, quando este tentara assediá-la. Shairany era capaz de escapar à sua perseguição quando estava no palácio, respondendo-lhe mal em frente a outras pessoas para o embaraçar, e ele agora limitava-se a olhá-la rancorosamente. Seth apenas esperava que não se lembrasse de se vingar.

Bryan foi coroado, na sua cabeça repousando a coroa elegante de ouro refulgente. Sorria agora abertamente a todos, descendo as escadas do estrado para o caminho que se abria à sua frente até ao exterior, ao hall. Parou, estendendo o braço à sua mãe e retomando a marcha. Agora seria o momento em que deveria falar para o povo. Ninguém saiu do lugar, soltando vivas enquanto ele subia as escadas até à varanda a partir da qual faria o seu discurso.

Seth acomodou-se melhor no lugar sem perder a graciosidade. Esperava que o discurso não fosse grande. Nyree parecia compenetrada em tentar ouvir o que Bryan dizia aos seus súbditos, apesar de não se perceber uma palavra do que ele dizia, tudo abafado pelos gritos e aclamações do povo. Shairany, contudo, olhava Seth de lado, com um sorrisinho que o irritou.

— O que foi? — silvou-lhe, em voz baixa.

Ela endireitou as costas. — Ora, nada. A Ny parece muito feliz, hoje, não achas?

Decidiu não lhe responder, voltando-lhe parcialmente as costas. Com a teimosia dela não valia a pena competir.

O discurso terminara finalmente, por entre uma salva de aplausos e assobios, tudo saudando o novo rei. Era-lhe difícil pensar em Bryan como rei, mas teria de se habituar.

Acabada a cerimónia de coroação, passar-se-ia ao banquete. O primo voltava agora para dentro, ainda tão sorridente quanto antes, e o público na sala levantou-se para o seguir. Da varanda interior onde estavam instalados, os irmãos Wynter fizeram o mesmo, todos graciosamente felinos. Seth cedeu a dianteira a Nyree e Shairany que poderia ter algo de jocoso para os mais atentos. Ou talvez fosse apenas o relampejar da luz vinda do exterior nos seus olhos cinzentos.

O cortejo era longo e mais atabalhoado que o da Celebração da Passagem, não existindo agora a ordem dos pares imposta pela solenidade e vogando pelos caminhantes uma lesta onda de boa-disposição. Seth não partilhava dela; o seu humor ainda não melhorara muito, tendo sido, apesar de tudo, capaz de forjar um sorriso que apresentou aos outros convivas, facilmente enganados. Nyree não reparou nele, alegremente seguindo a procissão, mas Shairany abanou a cabeça, fingindo estar desapontada. Ele lançou-lhe um olhar irritado e acelerou o passo, passando à frente das duas e surgindo ao lado de Aune Lenore. Era uma rapariga que não gostava de falar, tímida por natureza. Era bonita, mesmo com a cara comprida e olhos grandes como os de uma coruja, castanho-esverdeados. O cabelo, preso com ganchos de modo a formar um nó elaborado, começava a soltar-se, deixando madeixas de um loiro escuro a flutuar em redor do rosto. Todo este corou quando viu Seth surgir, mais ainda quando ele lhe dirigiu o seu sorriso. Estava em crer que ela tinha um fraquinho por ele, e aprazia-lhe brincar com ela de quando em quando. Provavelmente a paixoneta dela crescera quando ele a salvara, subtilmente, de um encontro acidentado com Tyrev. O homem, insistindo em ter todas as mulheres existentes no palácio, fossem elas de que estrato social fossem, não deixava de perseguir mesmo as damas de companhia da sua mãe, encurralando-as em esquinas e corredores vazios. Por mais que uma vez Seth salvara uma ou duas, incluindo a sua própria gémea.

Caminharam lado-a-lado em silêncio, Seth e Aune, até aos jardins reais, onde estavam espalhadas várias mesas, aparentemente sem razão ou ordem; junto delas um pequeno estrado com uma banda e um grupo de saltimbancos no meio, no espaço em redor da fonte. Seth lembrava-se de brincar nela quando fora mais novo, nas vezes em que, com a família, viera visitar a corte. Ele e Shairany, ignorando Nyree, que lhes pedia que parassem, entraram para dentro de água, lutando entre eles e acabando encharcados. Bryan pegara neles pela gola e levara-os para o palácio, sorrindo como se também ele tivesse caído dentro da fonte. Não escaparam a uma descompostura dos pais, tendo sido impedidos de sair para os jardins exteriores durante algum tempo. Seth imaginou-se a saltar novamente para a fonte, agora na festa da coroação do primo. Ele riria, provavelmente, e talvez voltasse a pegar nele pelo pescoço para o obrigar a ir mudar de roupa.

Naquele momento, Bryan tomava lugar na mesa que tinha um lugar de destaque, na cadeira central, ricamente ornada e entalhada, de madeira escura com decorações douradas. Sentou-se com um sorriso radiante, curvando-se para a ainda sisuda mãe que se sentara ao seu lado direito. Os três Wynter tomaram lugar na mesa mais próxima da da família real, sentando-se Seth entre as duas irmãs. Nyree ficara na ponta; Shairany sorria alegremente para a amiga ruiva, Alene Eudora, trocando comentários em voz baixa.

Quando todos estavam sentados, a comida começou a surgir, criados carregando-a em largas travessas que colocavam nas mesas para os convivas. A gémea de Seth mantinha os olhos cinzentos pousados sobre os saltimbancos enquanto comia, um deles engolindo uma espada, o outro rodopiando no meio de cordas em chamas. Imitou-a; entre os artistas havia uma mulher que envergava roupas estranhas e justas ao corpo, revelando muito do que se encontrava por baixo. Talvez ela estivesse livre mais tarde. Nessa altura Bryan levantou-se, batendo com a faca no copo de cobre, e instalou-se o silêncio.

— Estimados convidados, — começou, olhando todas as mesas, — este dia é um de celebração e de festejos. Merece ser vivido com alegria e contentamento, com comida e bebida, música e dança. Não deve ser esquecido, contudo, aquele que durante anos nos reinou, ensinando-nos tanto e de forma tão justa, com firmeza e benevolência, sem esquecer uns e outros e estendendo a mão de forma igual a todos.

Fez-se um momento de silêncio ante as suas palavras, e a rainha levantou-se de seguida. — Tens razão, meu filho, meu rei. Mas agora um novo futuro espera-nos, um em que serás tu o nosso líder, o nosso guia, a nossa luz. — O seu sorriso era belo e sereno, transmitindo segurança e conforto. O filho tomou a mão dela e beijou-a, e o público aplaudiu.

Seth suspirou de impaciência e exasperação. Quão pior se tornaria aquilo? Os saltimbancos saltavam agora do sítio onde estavam, a música começava a preencher os jardins, imiscuindo-se com o perfume das flores outonais e com as folhas caídas das árvores já vermelhas, acastanhadas ou ainda verdes, verdes por todo o ano. Recostou-se na sua cadeira enquanto via os artistas procurar pares entre os nobres; eram recebidos com exclamações de ultraje ou com risos divertidos, estes que riam eram levados para o centro, rodando em redor da fogueira ao som dos acordes da banda. A mulher que fitara há bocado estendia a mão para Carson Lee, mas ele olhou-a com desprezo e virou-lhe depois as costas. Em poucos minutos, Seth levantara-se e levara-a para junto dos outros pares, sorrindo aos seus olhos esverdeados e cabelos castanhos em belos caracóis anelados. Tanto um como o outro eram ágeis e graciosos dançarinos, coordenando os passos fácil e lestamente sobre as lajes brancas do chão. A música acabou, começou outra, de novo dançaram como um perfeito par. Ela tinha um sorriso fácil e agradável, era alta, quase da sua altura; não falaram, não era preciso.

Após terminarem uma quarta dança, ainda sem trocarem palavras, Seth puxou-a pelo braço, e discretamente abandonaram o espaço da festa em direcção ao pinhal. Partiam sons abafados daqui e dali, provavelmente de gente que tivera a mesma ideia. Levou-a para mais longe, não querendo que outros o ouvissem também. A mulher sorria ainda, não parecendo assustada. Estaria habituada, talvez. Encontrou um lugar que lhe pareceu confortável, encostando-a a uma árvore e tomando-lhe as formas com as mãos. Não demorou a esquecer a festa.