sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

capítulo II.

Celebração

Shairany conduziu o cavalo através do pátio, até aos estábulos. Não tardou, observadora, a aperceber-se do silêncio que reinava, mesmo no exterior do palácio. Ao atravessar a cidade, reparara no quão tranquila estava, sem os mercados a borbulhar ou a movimentação habitual. Quando entregou o cavalo a um moço de estrebaria, não se demorou a perguntar-lhe o que se passava. Apressou-se em direcção aos aposentos da irmã, pensando ter de evitar os mexericos das damas nos aposentos das mulheres, mas nenhuma se encontrava à vista. O que temia parecia ter-se tornado verdade. Sem bater, entrou no quarto de Nyree.

A irmã estava sentada numa cadeira almofadada, olhando vagamente para a janela. Ainda restavam vestígios de lágrimas nos seus olhos cinzentos, tão iguais aos seus. Ela virou-se na sua direcção, mas o sorriso que esboçou foi fraco.

— Ele... Atravessou? — forçou-se a perguntar.

Nyree apenas acenou, novas lágrimas a brotarem-lhe na face. Shairany tomou lugar na cama e fitou o nada, abstraidamente. Se tivesse chegado mais cedo... Não podia ter sido há mais de dois dias, se ainda não tinha sido realizada a Celebração da Passagem.

— O Bryan. Como está ele? — O seu primo mais velho deveria sentir-se desgastado, sem vontade de encarar ninguém. Recordou-se de quando uma dama lhe insultara os cabelos cinzentos e as maneiras frias e distantes, pouco próprias de uma donzela. Fora ele que relembrara à mulher que ela era uma sobrinha do Rei, e que não lhe cabia a si censurá-la.

— A cumprir o seu papel. — Sem dúvida. Ele não seria capaz de admitir fraqueza em frente aos seus vassalos. Seria coroado rei. Na prática, já o era. Não falaria com ele a não ser que a procurasse, sabia, mas sentia pena do cortês primo. Nunca conhecera bem o tio, Clement Wallace, mas lamentava a perda de um homem justo.

A irmã ergueu-se. — Tens de mudar de roupa. Já foste ao teu quarto? — Shairany percebia que estava a tentar distrair-se, abster-se de pensar no que a magoava, naquele momento. Onde estaria Seth? Era raro Nyree encontrar-se sem ele, ainda para mais quando se sentia tão abalada.

— Ainda não. Vim directamente para aqui. Quando vai ser a Celebração?

— Amanhã à noite. Não sei se sou capaz de ir. — Deixou-se cair de novo na cadeira, como se cansada.

Shairany abanou a cabeça. — Não podes faltar, o Bryan vai precisar de ti lá. — Nyree parecia mais pálida do que era seu costume. — Deita-te, vou mudar de roupa e volto já. – Esperou que a irmã fizesse o que dissera antes de sair do quarto.

Esgueirou-se por entre os corredores sem qualquer ruído, até alcançar o seu quarto. Mudou rapidamente de vestido para um que não estivesse sujo de poeira e apressou-se a regressar para junto de Nyree. Mesmo antes de entrar, ouviu vozes levemente irritadas no interior. Suprimiu um resmungo e abriu a porta.

— Ah, a minha irmãzinha. — Seth encontrava-se sentado na cadeira onde Nyree estivera momentos antes, e apresentou-lhe um sorriso breve, ao contrário do costumeiro. — Chegaste agora?

Shairany acenou, sem responder, e sentou-se ao lado da irmã, na cama. Foi com ela que falou. — Quando é a Celebração?

— Esta noite. — Levantou-se e dirigiu-se ao armário. — Tenho aqui um vestido para ti. Entregaram-mo ontem, para o caso de vires.

Estendeu-lho, uma única peça de seda branca, a cor da Celebração da Passagem. Era bordada a linha prateada no peito e na bainha da saia, com motivos florais.

— Obrigada. — Nyree pareceu hesitar, como se fosse acrescentar algo, mas não o fazendo. — O que foi?

— Tens de arranjar um par, Shay. — Oh, tinha-se esquecido dessa parte. E agora? A irmã continuou. — Podes ir com o Seth.

O rapaz fungou, e Shairany fitou, incrédula, Nyree. — Com ele? Eu? E tu?

Ela corou profusamente, e o irmão resmungou algo imperceptível. — Vou com o Bryan. Ele pediu-me ontem, e não lhe podia dizer que não depois de perder o pai.

Shairany sorriu. Gostava de ver Nyree com o primo mais velho, ainda que tivesse de aturar Seth.






A noite chegou, muito a contragosto de Shairany. Gostaria de ter ficado no quarto, mas Ilean surgiu para a ajudar a vestir-se. Suspirou exasperadamente e deixou-se conduzir à sala de banhos, onde foi enxaguada e esfregada até não restar qualquer vestígio da poeira da viagem. Quando estava pronta, Ilean colcou-lhe o corpete, as saias inferiores e, por fim, o vestido que Nyree lhe havia entregado nessa manhã. Estava um pouco largo e teve de ser apertado até ao limite, mas no final acabou por assentar-lhe bem. Ilean penteou-lhe também o cabelo, formando um nó cinzento na nuca e prendendo-o com uma rede com cristais que cintilavam a cada movimento da sua cabeça.

Assim que na porta soaram batidas secas e firmes, três, olhou uma última vez o espelho, revendo-se na súplica dos próprios olhos, e saiu ao encontro do irmão. Nas portas das outras damas encontravam-se também outros homens, todos igualmente bem vestidos e com rosas brancas na mão. Viu Bryan bater à porta do quarto de Nyree e esta a surgir, penteada com uma trança entrelaçada caindo-lhe por cima do ombro direito, ela mesma, com fitas níveas que contrastavam com o cabelo negro. Um círculo prateado enfeitava-lhe o topo da cabeça.

— Estão bonitos, não estão? — perguntou, com um sorriso matreiro, e Seth, vestido de branco à sua frente, olhou-a irritadamente. Também ele estivera a observar o par.

— Vamos embora. — Estendeu-lhe o braço, que ela tomou, distraidamente. A fila à sua frente avançava, lentamente, procissão fúnebre pausada.

Quando alcançaram o salão principal, Shairany avistou o corpo de Wallace pousado sobre uma comprida mesa, vestido de azul, sereno como a cor que envergava, a face tranquila. Ouviu alguns soluços vindos de outros pares. Não pôde verificar se uma das mulheres que choravam era Nyree, visto ela estar de costas para os dois irmãos.

Todos pararam e cada par avançou, lentamente, para prestar homenagem ao rei que falecera. Seth, ao seu lado, suspirou de aborrecimento enquanto esperavam a sua vez, mas comportou-se solenemente quando foi a sua vez. Ajoelharam e cada um beijou a mão fria do seu antigo suserano, que partira acompanhado pelo Senhor do Sono. Quando a alvorada chegasse, teria completado a Travessia.

Quando todos haviam prestado a sua homenagem a Clement Wallace, sentaram-se nas mesas e a música começou. Não havia nela nada de soturno, e alguns pares rodopiaram pelo salão. Shairany reparou no esforço que Bryan fazia para sorrir, e na ajuda a realizar tal que Nyree lhe prestava. Um rapaz da sua idade, escudeiro de Carson Lee, de cujo nome ela não se lembrava, convidou-a para dançar. Recusou com elegância. Não gostava de Carson, um convencido cavaleiro que assumia que todos lhe deviam prestar vassalagem, por ser de uma casa importante. Enquanto Shairan, muitas vezes envolvia-se em discussões com ele por causa da sua arrogância. Se ele soubesse que Shairan não passava de uma mulher disfarçada, provavelmente teria um ataque de fúria.

Seth ao seu lado mal tocava na comida. Qualquer outra pessoa pensaria que era por causa do falecido rei; Shairany sabia que não. O olhar do irmão não parava de se desviar para Nyree e Bryan, enquanto ambos se levantavam para dançar. Apenas suspirou quando acabaram e o príncipe herdeiro, quase rei, tomou a mão de outra donzela para a conduzir numa dança. Nesse momento ergueu-se abruptamente e, sem uma palavra, dirigiu-se à gémea.

“Que idiota.”

Os pratos do jantar surgiam a uma velocidade surpreendente, e assim desapareciam, enquanto vários criados serpenteavam por entre as imensas mesas e serviam as iguarias. Sentia-se triste, e também ela deixou grande parte da refeição no prato. Sabia que Bryan seria um excelente rei, mas Clement fora um grande senhor e agora estava morto. A alegria dos convivas envergonhava-a. Sabia que era suposto ser esse o sentimento, mas não conseguia partilhá-lo.

Esboçou um sorriso quando Alene Eudora tomou o lugar vazio de Seth. Vinha afogueada; estivera a dançar. Abraçaram-se antes de dizer fosse o que fosse. Alene era das poucas pessoas em quem confiava, e das raras que sabiam que, quando ausente, assumia a armadura de um cavaleiro e mudava de nome.

Esperou e escutou enquanto a outra rapariga lhe contava as novidades e o que acontecera na corte real durante a sua ausência. Rumores eram a sua especialidade. Ouvira dizer que Candice Rolf, uma das damas da rainha, estava prometida a Gwayn Harland, cinco anos mais novo e escudeiro de Tyrev, e que casariam quando ele se tornasse cavaleiro.

Shairany sabia que não faltava muito para que isso acontecesse, e que ele não se importaria de casar com Candice, uma jovem adorável e que atraía o olhar de vários homens.

O resto da noite decorreu numa tagarelice intermitente, tornando-se mais escassa à medida que a manhã se aproximava e a luz da alvorada se começava a mesclar com a das velas que iluminavam o salão.

Assim que o sol nasceu completamente, o corpo foi levado para o exterior, onde foi sepultado em conjunto com o dos seus antepassados. O silêncio era profundo mas não incómodo, apenas em parte devido ao cansaço dos presentes. Quando terminou, regressaram em passo exausto aos quartos, para também eles repousarem, desta vez o sono dos vivos.


© Débora e Catarina

1 comentário:

  1. Catarina, a tua escrita está cada vez melhor. *.*
    E a história está muito interessante. :P

    Parabéns às duas! ^^


    Venha o próximo ;)

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